quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Balada da Caridade

Era dia de chuva gostosa, bom pra ficar em casa dormindo, jogando conversa fora, lendo um livro legal, ouvindo uma musiquinha ou assistindo tv... se não tivesse que ir pra faculdade fazer prova. Esse dia chegou e era o dia da menina experimentar uma pontinha do outro lado da história. Afinal, tomar um banho de chuva pode significar muita coisa além de ser irritar ou morrer de alegria com as dádivas que caem do céu... muita coisa mesmo, a menina que o diga.
As primeiras gotas que caíram sobre ela, a fizeram sentir um gostinho bom por estar vivendo aquela experiência... quis correr, aumentou o volume do mp3 e escolheu a música mais animada que tinha. Mas logo pensou no material que trazia, nos documentos que havia buscado há pouco, no cabelo e no cheiro de cachorro molhado que ficaria... sentiu frio e ansiedade, buscou refúgio. Tudo parecia bem natural, e era mesmo. Nada que um banheiro com papel toalha, espelho e fugir do ar-condicionado não resolvesse... resolveu.
Mas a chuva insistiu na perseguição à menina e voltou a surpreendê-la no breve caminho entre a faculdade e o ponto de ônibus... Foi traiçoeira e dessa vez pegou de jeito... Talvez, não tenha se contentado em pegar somente a menina e esse foi o maior problema da noite. Interveio na vida de um motorista de caminhão e de um ônibus coletivo, causando morte e incômodo a quem sequer imaginava o ocorrido.
Duas horas se passaram, trânsito parado e a menina ainda à espera de um ônibus... o dia começava a perder a graça, a disposição começava a perder o sentido... Muito frio, frio de doer... arrepios, respiração ofegante, mãos adormecidas, lábios mudando de cor... doía as costas e a cabeça da menina. Ela pensava em quantos mais podiam dividir com ela aquela mesma sensação... Era melhor ligar para alguém pedindo ajuda, pois a sensação que sentia era a de que não poderia agüentar por mais tempo... insucesso. Pensava agora em quantos mais também não conseguiriam ajuda... talvez muito mais do que ela pudesse imaginar e certamente com sentimentos e sensações bem mais desesperadoras.
Lembrou-se que estava apenas com o almoço e um chocolate-quente da chuva anterior. Sentiu náuseas e fome. Pensou em quantos mais estariam com náusea e fome naquele mesmo espaço de tempo... não conseguiu concluir seu pensamento. Irritação, muita irritação. Quantos mais estariam irritados?? Por que a gente se irrita, se a irritação não resolve nada?? Perder a calma a irritava mais ainda.
A chuva havia cessado, mas era como se tivesse multiplicado por mil, tamanho o frio e o mal-estar de se sentir úmida. Mais fome, mais náuseas, mais dores na cabeça e em cada pedacinho do corpo de menina, as idéias estavam se perdendo... Ufa! Parecia o ônibus dela vindo ali... Esforçou-se para mover as pernas, abrir as mãos, embarcar e acomodar-se naqueles bancos de gelo... nunca foi tão bom não sentir o vento... a respiração e as idéias pareciam se normalizar... Irritação e fome... frio e fome... preocupação, angústia e frio... solidão. Solidão de quem passava frio e fome, solidão de quem não conseguia ajuda, solidão de quanto mais por ai? A menina não sabia, era impossível mensurar, mas queria dividir sua solidão com eles... Pensou em alguém que experimentou o cúmulo do abandono e da solidão e ousou sentir-se próxima dEle.
Não cabia mais ninguém naquele ônibus, muitos tiveram que ficar pelo caminho. A menina se entristeceu por eles e mais ainda por aqueles que “viviam” pelo caminho. Descobriu também que aquele caminho foi de angústia maior para os de outro ônibus e de um caminhão...
Seria a chuva? Começou a pensar e sentiu-se paradoxalmente incapaz de concluir... Tão gostosa e tão cruel, alimentando a vida e causando mortes... como pode? Ou será que somos nós é que ainda não sabemos lidar com ela, acolher bem sua chegada??
Lembrou-se duma canção que agora faria todo sentido... A “Balada da Caridade”, que agora podia sair de dentro da alma, simplesmente porque ela conseguiu experimentar na pele uma pontinha do outro lado, com direito a hipotermia e tudo... e porque chegando em casa, pôde tomar um banho quente, comer, se aquecer e arriscar um sono sossegado... coisas que tantos outros por aí não podem.

Balada da Caridade

Para mim a chuva no telhado
É cantiga de ninar
Mas o pobre meu Irmão
Para ele a chuva fria
Vai entrando em seu barraco
E faz lama pelo chão

Como posso
Ter sono sossegado
Se no dia que passou
Os meus braços eu cruzei?

Como posso ser feliz
Se ao pobre meu Irmão
Eu fechei meu coração
Meu amor eu recusei?

Para mim o vento que assovia
É noturna melodia
Mas o pobre meu irmão
Ouve o vento angustiado
Pois o vento, esse malvado
Lhe desmancha o barracão

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